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Vozes e Passos na Cidade que Envelhece

Data da publicação: 3 de novembro de 2025 Categoria: CRÔNICIDADES

Por: Ana Letícia Freitas Lima

“Você quer parar o tempo? O tempo não tem parada”, assim entoa o cantor e compositor pernambucano Alceu Valença. E essa “embolada do tempo” não é somente um verso, é a realidade que se desenha nas casas, calçadas, ruas, praças e cidades do Brasil. Enquanto a melodia toca, testemunhamos silenciosamente uma transformação profunda: o país está envelhecendo a passos largos. 

Os números são a partitura dessa mudança. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com os dados levantados nos dois últimos censos demográficos, enquanto a população brasileira cresceu 6,5% entre 2010 e 2022, o número de idosos disparou próximo aos 50%. O Ceará, nosso chão, segue o ritmo: hoje, 14,67% dos cearenses têm 60 anos ou mais – um salto de 36,5% em doze anos. Se essa toada assim continuar, por volta do ano de 2070, quatro em cada dez cearenses serão idosos. Em Fortaleza, não é diferente: a capital também viu sua população idosa crescer mais de 50% no referido período, refletindo a mesma trilha nacional. 

Mas o que esses números significam, senão que as cidades precisam, urgentemente, aprender a nova letra desta música? A pergunta que fica ecoando após os dados, é: nossas cidades, nossas ruas, nossos serviços, nosso olhar, estão preparados para acolher essa nova geografia que se forma? 

A resposta, ou a falta dela, está estampada na geografia dos nossos espaços de vivência cotidiana. Os dados censitários nos mostram dois fatos: a cada dia a população é mais urbana e mais idosa, ou seja, as pessoas estão vivendo cada vez mais e, majoritariamente, nas cidades. E foi na inquietação e incompreensão de que tema tão urgente venha sendo tangenciado nos estudos geográficos brasileiros que, entre os anos de 2018 e 2020, debrucei-me em minha dissertação de mestrado sobre a Geografia do Envelhecimento, no intento de compreender como as pessoas idosas viviam e se viam na cidade. 

Minha busca levou-me até os calçadões da orla de Fortaleza, esses longos tapetes de concreto e vida entre a cidade e o mar. Justamente lá, que talvez sejam os espaços públicos de acesso mais democrático, longe de serem apenas números em uma projeção demográfica, os idosos escrevem, com seus corpos e seus ritmos, um outro mapa da cidade. Um mapa de deleite, mas também de resistência. 

Observando e descrevendo este mapa pude testemunhar as diferentes formas de apropriação desses espaços. Há os que transformam o calçadão em uma sala de visitas ao ar livre, encontrando amigos para conversar e observar o movimento dos transeuntes. Há os que o usam como hospital ou farmácia natural, buscando nas caminhadas, atividades físicas ao ar livre em geral e nos banhos de mar o alívio para as dores do corpo e, quiçá, da alma. E os que, simplesmente, ocupam um banco como posto de observação, parafraseando o filósofo Heráclito, para assistir a um pôr do sol que nunca mais se repetirá da mesma forma.

Contudo, a relação com a orla não é somente de lazer para todos aqueles que ali convivem. Minha pesquisa revelou idosos que, após uma vida de labuta no litoral – como pescadores ou vendedores ambulantes –, hoje sequer frequentam assiduamente os espaços públicos litorâneos de Fortaleza. “Eu só vivia dentro d’água, era quase um peixe”, recorda-se o senhor V.F., 76 anos. Já dona M.I.F.O., 66 anos, viu-se viúva com seis filhos, tendo que “vender piranhas (de cabelo) na praia” para sobreviver. Para eles, esses espaços à beira-mar sempre foram palco de trabalho e sobrevivência, sem direito ao descanso. 

Para muitos idosos, o trabalho nos calçadões não é uma escolha – uma forma de continuar exercendo suas funções, permitindo que estes se sintam incluídos nos seus círculos sociais pela manutenção de seus papéis e autonomia – mas sim uma necessidade. É o caso do senhor R., 82 anos, que há 35 anos empurra sua bicicleta com um carrinho de pipocas pelo calçadão da Vila do Mar na Barra do Ceará. Ou do senhor E., 61 anos, que percorre quilômetros desde a sua residência no bairro Vicente Pinzon até a Areninha do Caça e Pesca pelo calçadão da Praia do Futuro vendendo picolés e sorvetes. Suas bicicletas são mais do que instrumentos de trabalho, são o retrato de uma política pública que ainda não chegou. 

Fortaleza, celebrada como a “cidade que mais investe na juventude”, escreve seu futuro com programas especializados. Enquanto isso, no presente silencioso dos calçadões, uma outra pergunta ecoa: que iniciativas, com nomes tão cheios de propósito quanto “Bolsa Jovem” ou “Jovens Futuros”, são tecidas para quem já carrega o futuro no rosto, em forma de história? A orla, que poderia ser um grande ponto de encontro entre gerações, acaba revelando um descompasso: o mesmo lugar que é vitrine de uma cidade jovial – com seus incontáveis corredores, ciclistas, skatistas e pilotos de patinetes elétricos – torna-se, no ritmo lento de seus caminhantes mais antigos, um testemunho delicado de que o afeto pelo tempo que passou ainda busca seu lugar ao sol.

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