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Motociclistas de aplicativos: as agulhas de aço e a pressa nas cidades

Data da publicação: 5 de outubro de 2025 Categoria: CRÔNICIDADES

Por: Francisco Moacir de Saboia Filho

O trânsito das cidades se assemelha a um tecido denso e espesso, entrelaçado com aço, fumaça e buzinas. Nesse cenário, as motocicletas funcionam como agulhas, tentando costurar esse caos. São veículos ágeis e precisos, em busca das brechas entre os carros e dos centímetros de asfalto livre. Essa costura sobre duas rodas, porém, é extremamente perigosa. Cada ponto no asfalto é um risco calculado, onde o erro não representa apenas um furo no tecido, mas uma costura na própria pele.

Vivemos sob o domínio do imediato, como arquitetos de nossa própria pressa. A rotina sobrecarregada, os prazos apertados e as longas horas inertes passadas dentro de um ônibus nos empurram, quase por instinto de sobrevivência, para essa solução aparentemente ágil e eficiente. Os motociclistas de aplicativos surgem, então, não como uma simples opção, mas como uma tábua de salvação na corrida desesperada contra o relógio urbano.

É um pacto faustiano urbano: vende-se um pouco de segurança para ganhar um tempo que, ironicamente, pode significar a perda de um tempo futuro. E onde, afinal, deve ocorrer essa costura urbana? Qual é o lugar da “agulha” nesse tecido viário? Na prática, a resposta se impõe de forma cruel e não escrita. Quando as motos ocupam uma faixa de veículos, enfrentam hostilidade imediata, buzinas e gestos de irritação. Seu lugar real, portanto, é o espaço invisível e letal entre os veículos, desviando de retrovisores como obstáculos. Nesse cenário, um toque não é um cumprimento, mas uma colisão.

A costura no asfalto é, portanto, resultado direto de uma necessidade premente, e não de ousadia. Constitui um ato de desespero logístico. Conforme o Atlas da Violência 2025, os acidentes com motocicletas corresponderam a 38,6% de todas as mortes no trânsito no Brasil entre 2013 e 2023. Se o cenário nacional já é alarmante, em estados como o Ceará a situação assume contornos ainda mais críticos: mais da metade das vítimas fatais de acidentes de trânsito eram motociclistas.

Essa realidade concreta se reflete, com precisão assustadora, na frágil teia jurídica que regula a atividade dos motociclistas de aplicativos. Em diversas cidades, aplicativos de “mototáxi” enfrentam proibições em nome da segurança; outros funcionam sob o regime precário de liminares. Um grande número de trabalhadores e usuários permanecem envolvidos, sustentados por uma combinação de necessidade e risco.

Nesse contexto, Fortaleza deu um passo importante para a mobilidade urbana. Em 14 de agosto de 2025, a Câmara Municipal aprovou a criação de uma faixa azul exclusiva para motocicletas. Embora ainda não tenha sido sancionada pelo prefeito, a medida representa um avanço significativo. Em grandes capitais, como São Paulo e Rio de Janeiro, esse tipo de infraestrutura já existe, ainda que em uma pequena fração das vias. É um começo, um reconhecimento de que a “agulha de aço” precisa de seu próprio caminho, e não apenas das frestas entre os veículos.

Torna-se imperioso superar a visão que reduz as motocicletas a um mero problema de fluxo veicular. Elas são o sintoma mais evidente do colapso de um modelo de mobilidade urbana excludente, a prova de que o sistema falhou em oferecer alternativas seguras, rápidas e dignas para todos. Urge a construção de políticas públicas que transcendam a lógica de economizar minutos e passem a valorizar vidas. Isso implica garantir condições de trabalho seguras aos motociclistas, proteger os passageiros que confiam diariamente nesses serviços e investir em infraestruturas adequadas, como faixas exclusivas, pontos de apoio e sinalizações inteligentes.

É necessário também fortalecer a governança da mobilidade urbana, com planejamento integrado, fiscalização efetiva e diálogo constante entre Estado, empresas, trabalhadores e sociedade civil. Só assim o trânsito deixará de ser um campo de sobrevivência para se tornar um espaço de convivência e respeito. A cidade precisa reconstruir o próprio tecido urbano, antes que os pontos dados no asfalto, costurados com pressa, descuido e abandono, transformem a agulha que hoje abre caminho em instrumento de sutura na própria carne da cidade.

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